Receita pra lavar palavra suja

Receita pra lavar palavra suja: lave a boca com sabão!? Quem nunca ouviu essa expressão?! Mas, não é o caso aqui…

Uma amiga me presenteou com esse poema da Viviane Mosé. Ao ouvir cada palavra na voz emotiva e impactante de Viviane (dá o play no vídeo!) lembrei-me do quanto a moda permeia todas as áreas. E como muitos que não necessariamente são da moda, nos trazem relevantes reflexões e contribuições.

Além do poema da Viviane Mosé, trago à memória a música de Noel Rosa sobre a grande questão “Com Que roupa Eu Vou?”. E para arrematar, o delicioso poema de Carlos Drummond de Andrade, “Eu, Etiqueta”, que no mínimo nos faz pensar em vários aspectos da moda!

RECEITA PRA LAVAR PALAVRA SUJA
Viviane Mosé

Eu descobri que a palavra não sabe o que diz.
A palavra delira.
A palavra diz qualquer coisa.

A verdade é que a palavra, nela mesma,
Em si própria, não diz nada.
Quem diz é o acordo estabelecido entre quem fala
E quem ouve.

Se existe acordo, existe comunicação.
Quando esse acordo se quebra,
Ninguém diz mais nada,
Mesmo usando as mesmas palavras.

A palavra é uma roupa que a gente veste…

Uns usam palavras curtas,
Outros, usam roupas em excesso.

Existem os que jogam palavras fora,
Pior são os que usam em desalinho.

Uns usam palavras caras,
Outros ostentam palavras raras.

Tem quem nunca troca,
Tem quem usa a dos outros.

A maioria não sabe o que veste.
Alguns sabem, mas fingem que não.
E tem quem nunca usa a roupa certa para a ocasião.

Tem os que se ajeitam bem com poucas peças,
Outros se enrolam no vocabulário de muitas.

Tem gente que estraga tudo que usa,
E você,
Com algumas palavras você se despi.

E aí, eu fiz uma receita.
Se a palavra é uma roupa, podem pensar…
A palavra está suja demais!
A gente usa as mesmas palavras o tempo inteiro!
As palavras ficam engorduradas!

Então falei
Receita para lavar palavra suja.

Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.

Algumas palavras quando alvejadas ao sol
Adquirem consistência de certeza.
Por exemplo, a palavra vida.

Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
Que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
O que recomenda esfregar
E bater insistentemente na pedra,
Depois enxaguar na água corrente.

São poucas as que resistem a esses cuidados,
mas existem aquelas… Dizem…
Que limão e sal tira sujeira difícil,
mas toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.

Mas eu nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas
Soltam um líquido corrosivo,
Que atende pelo nome de amargura,
Que é capaz de esvaziar o vigor da língua.

O aconselhado nesse caso é mantê-las de molho
Em um amaciante de boa qualidade.

Agora, se o que você quer
É somente aliviar as palavras do uso diário
Você pode usar somente sabão em pó e máquina de lavar.

Perigo!
Misturar palavras que mancham
No contato umas com as outras.

Culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
A culpa deve ser sempre alvejada sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada amizade e desejo,
Desejo é uma palavra intensa, quase agressiva,
E pode, o que não é inevitável,
Esgarçar a força delicada da palavra amizade.

A palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
Sob o risco de perderem o sentido.

Aquela sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
Produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras
É saber reconhecer uma palavra limpa.

Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos,
Que passeie pela expressão dos seus sentidos.

À noite,
Permita que se deite,
Não a seu lado,
Mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme,
A palavra, plantada em sua carne, prolifera
Em toda sua possibilidade.

Se puder suportar essa convivência
Até não mais perceber a presença dela,
Aí você tem uma palavra limpa.

E uma palavra limpa
É uma palavra possível.

COM QUE ROUPA EU VOU?
Noel Rosa

Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar

Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar

Eu já corri de vento em popa
Mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu

Meu terno já virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Seu português agora deu o fora,
Já foi-se embora e levou seu capital.
Esqueceu quem tanto amou outrora,
Foi no Adamastor pra Portugal,

Pra se casar com uma cachopa,
Mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

EU, ETIQUETA
Carlos Drummond De Andrade

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome… estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

E na voz de Paulo Autran, o poema de Carlos Drummond!

Se você conhece algum outro poema ou música que explora a moda, compartilha aí nos comentários! 🙂

#ModaArteMusica #fashion

Imagem do topo: Pintura de Camille Pissarro, As lavadeiras, de 1886.

 

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Cacilda Vitória

Quem escreve | Website

Artista visual, professora de artes e moda, especialista em arteterapia e fashion design, oficineira, sonhadora, criativa e incentivadora de talentos.

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